LÁ DE XAPURI...
Beto Rocha

No ano de 1935 nasce minha mãe, dona Neves, como era mais conhecida pelos vizinhos mais próximos numa “colocação” por nome de Santo Antonio, em Xapurí-Acre. Mas o seu nome mesmo era Maria Neves Chaves de Andrade, filha de um nordestino cabra da peste, como se dizia antigamente por aquelas bandas. Dependendo da situação era brabo. Contarei aqui a verdadeira saga da nossa família.
Quando nós ainda éramos adolescentes, minha mãe dizia:
- Vão já dormir meninos, é tarde.
Falávamos a ela:
- Mãe conte uma historinha pra gente, depois vamos dormir, Prometemos a senhora.
A minha mãe concordava e começava a contar para nós, que, quando ela tinha seus quatorze anos, trabalhava muito fazendo os deveres de casa, ou seja, fazendo comidas, lavando louças e roupas no rio Xapurí e nas horas vagas era professora. Seu pai era muito severo e não permitia nenhuma afronta a ele, como também não admitia a desobediência de nenhum filho. Não aceitava que eles tivessem nenhum vício, que por ventura pudessem adquirir com os colegas de infância. Ele não fumava e dizia sempre, que se pegasse algum filho fumando o faria engolir o cigarro aceso. Só que ela de vez em quando fumava escondido dele. Mas ao mesmo tempo era carinhoso com os filhos, prestativo para os vizinhos, fazia todos os seus gostos, só não aceitava erros ou falhas de ninguém, conta minha mãe. Pois a criação do mesmo, também foi severa, por partir de seu pai e sua mãe. O mesmo era de Barro Vermelho no Ceará.
Conta minha mãe que antes dele (meu avô) vir para o Acre uma tragédia tinha acontecido. Meu avô quando ainda jovem, trabalhava na Marinha e estava com uma namorada em uma confraternização entre os marinheiros de um navio da Marinha do Brasil que estava ancorado do litoral cearense. Num certo momento veio o filho do comandante do barco, que era muito galanteador, gostava de conquistar a namorada dos outros e por ser filho de uma autoridade usava isso em benefício próprio para obter vantagens. Meu avô pegou-o insinuando-se a ela. Então, de repente, o jovem saiu ao encontro dele, acabaram por discutir e o mesmo veio com um sabre e tentou lhe ferir. Meu avô por ser muito ágil segurou na mão do jovem inclinando o punhal para sua barriga e o atingiu primeiro. Em seguida pulou na água, nadou um pouco até chegar num navio que estava perto dali que partiria em direção à Amazônia com viagem se estendendo até o Acre, só o meu avô não sabia disso. E até hoje não se sabe se o jovem conquistador morreu ou não. E coincidentemente, nesse mesmo navio, dizia a minha mãe, vinha Mestre Irineu Serra, o homem que anos depois implantaria em Rio Branco-Ac o chá da ayahuasca, o conhecido como Santo Daime do Acre.
Por ser meu avô um “cabra da peste” como é chamado no Ceará, ninguém ousava enfrentá-lo sozinho, era respeitado por todos. Só pra se ter uma idéia certo dia nossa mãe estava lavando roupas no rio Xapurí quando o meu avô chegou ao alto do barranco teve a impressão que ela estava fumando. E estava mesmo. Mas percebendo sua aproximação, enterrou o cigarro na areia. Sorte dela!
Minha avó, Maria Gomes de Andrade (vulgo Doninha) era calma, vivia cuidando da casa e dos filhos.
Numa das vindas, atravessando o rio Xapuri para ir à cidade, está na canoa quando alguns homens chegam já na beira do rio. Um deles arrasta uma faca e sai riscando meu avô na barriga, os outros se aproximam também, começam uma briga. Quando termina, todos ficam furados, na barriga, nas costas, nos braços, inclusive, meu avô. Ainda novo e forte, tinha fama de brabo na cidade, mas não era tanto assim. Conta minha mãe que quando chegaram todos feridos no hospital, ficaram no mesmo quarto, pois o espaço era pequeno. Foram atendidos, fizeram os curativos, a coisa já estava calma.
A polícia foi avisada depois de alguns dias. Chegaram à casa de meu avô dois policiais armados e bem de longe perguntaram:
- O seu Antonio Matheus se encontra?
- Sim! Respondeu minha avó.
Meu avô sai de dentro de casa, também armado:
- O que é que vocês querem aqui?
- Viemos em paz! Responderam os policiais. O comandante quer falar com o senhor!
Meu avô falou pra eles:
- Vão em frente que logo em seguida eu irei, olhou para eles com a cara feia.
- Sim senhor! Sim, senhor nós diremos ao comandante!
Chegando ao quartel de Xapurí:
- Bom dia comandante!
- Bom dia senhor! O que aconteceu?
Meu avô começou a contar: “eu vinha na catraia, atravessando o rio, próximo à beira, quando os também jovens, que estavam no barco começaram a me atacar, eu só me defendi, comandante.”.
- Mas o senhor feriu todos...
- Sim, mas eu só me defendi!
- De quem era a faca?
- A faca era deles!
- Tem certeza disso?
- Sim, senhor!
O comandante ficou espantado com tanto agilidade do meu avô:
- Vá para casa seu Antonio, eu volto a lhe procurar, se for preciso.
Meu avô, com todo aquele vigor e orgulho, sai e vai embora do quartel. E sua fama se espalha por toda a pequena Xapurí.
Passaram-se alguns anos...
Meu pai se chamava Raimundo Estanislau da Rocha, conheceu minha mãe e logo se casaram. Ele era tocador muito famoso no Clube Municipal, mais conhecido por “Beijuba”. Antes de se casar com minha mãe meu pai era muito mulherengo. Casou com minha mãe levando dois filhos na bagagem, pois sua primeira esposa era professora, mas tinha falecido há algum tempo. Logo em seguida ela engravidou. Então vieram os filhos. O primeiro chegou, dois anos depois chegou o segundo e de dois em dois anos vieram os outros inclusive eu que era o quinto mais os dois que o meu pai trouxe com ele, fazendo um total de sete, já tinha outro na barriga, que viria nascer aqui em Rio Branco. Os meninos se “danaram” a crescer, era assim que se falava antigamente.
Era tanto menino que minha mãe teve uma excelente idéia: tinha um casarão ao lado de casa, ela começou a usá-lo como escola. Ali começou a nos alfabetizar, sem ter nem o primário, só tinha 17 anos, mas tinha um sonho de vencer na vida. De repente, não tinha mais estudos para eles naquele lugar. Enfim, os meus três irmãos mais velhos, foram bem alfabetizados por ela, só o Português que dava um pouco de trabalho para eles, aprenderam muitas outras coisas, que tivemos que deixar nossa pequena Xapurí e conquistar novos horizontes, que é o sonho de toda família que sai do interior.
Meu pai concordou, mas não gostou muito da idéia. Então, paramos na cidade e compramos cobertores para nos agasalhar para que o frio da noite não nos pegasse desprevenidos. Minha mãe não deixava faltar nada para a viagem, me lembro ainda, quando tinha três anos de idade, uma coberta que ela comprou, que insiste em continuar exalando seu cheiro em meu nariz, como se fosse uma espécie de perfume do tempo, para que nós nunca esquecêssemos lá de Xapurí. Em seguida partimos rumo ao centro, para comprar alguma coisa para a viagem. Meu pai dizia: “nós não temo dinheiro, minha véia”. Depois de muitos anos que ele tinha morrido, minha mãe falava que ele, não queria vir para Rio Branco, sempre botava dificuldade. Minha mãe disse: tenho uma idéia e chegou a uma conclusão:
- Vamos de canoa?
- Canoa? Você tá doida é?
Aí arrumaram as coisas, venderam o que puderam. Lá foram remando, remando rumo a Rio Branco. A cada remada dada, cada vez mais a princesinha do Acre ficava para trás, mas os nossos sonhos estão lá na frente! Não estão mais ali na nossa pequena Xapuri!
Quando passavam pelos ribeirinhos, eles perguntavam lá do alto do barranco:
- De onde vocês vêm?
Meu pai respondia:
- Lá de Xapuri!
Muitos perigos enfrentaram. Em um determinado ponto da viagem, enquanto remavam, entrou uma cobra na beira do barco. Meu pai gritava:
- Olha cobra aí menino! Um deles batia com o remo na cobra, aí ela afundava e sumia nas águas do rio.
Enfim, depois de muita aventuras e sofrimentos e longos sete dias com sete noites nós chegamos em Rio Branco, eu era ainda muito pequeno com apenas três anos de idade, vim com a minha mãe numa “chata chamada de Valéria”, era uma espécie de embarcação maior que existia por aqui.
Quando chegamos, subimos o barranco do rio e andamos um pouco até chegar à fonte luminosa. Meu irmão depois de mim viu aquele bicho grande andando na rua, saiu correndo para os braços da minha mãe com medo, minha mãe disse: é apenas um carro meu filho, pois não era mesmo uma rural que vinha na Rua Getúlio Vargas, próximo ao palácio, considerado um carro de luxo na época. Também tem razão, nunca tínhamos visto um carro na vida.
Alguns anos se passaram...
Eu e meu irmão vendíamos quibes, ele na Escola Normal eu no Grupo Escolar Presidente Dutra. Todo dia tirávamos algum dinheiro, para no final de semana assistir ao matinê, escondido dela é claro, mas se ela descobrisse era peia na certa,. Nossa primeira vez foi no cine Rio Branco. Estava passando um filme de bang bang. Estávamos sentados nas cadeiras já há algum tempo comendo pipocas quando começa o tiroteio, o bandido atira mirando para nós, meu irmão se levanta e se esconde por trás das cadeiras. Eu sem entender nada me escondi também. Talvez estivéssemos pensando que o tiro poderia nos acertar, sei lá... Éramos só crianças do interior, tudo era novidade para nós, nunca tínhamos ido a um cinema, nem visto tal feito. Enfim, crescemos e com isso os anos se passaram, hoje somos nove irmãos vivos, graças a Deus, oito em Rio Branco e uma em Manaus, o mais velho, por parte de pai morreu por lá em dois e mil e dois. Todos nós somos empregados, seis são funcionários públicos, os três alfabetizados pela minha mãe, que foram citados no início dessa história, são professores, na rede estadual e municipal, um deles, o mais velho por parte da minha mãe e do meu pai é doutor em história, tem uma outra que mora em Macapá-AP, é empresária na rede de livrarias e outro é escritor de livros infantis e trabalho com arte gráfica, sendo bem sucedido na área. Na minha família, “de médico e de louco todo mundo tem um pouco”.
Antes que me esqueça, minha mãe a matriarca da família, hoje é conhecida por todos como Maria das Neves, tem setenta e quatro anos. Se vocês querem saber, ela continua fumando até hoje. Mas a nossa história ainda não termina aqui...
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